terça-feira, 17 de julho de 2007

Desvario

Tava dando minha refletida rotineira, olhando para o horizonte, digo para o nada, através da janela da lavanderia. Eu costumo observar os telhados das casas e as janelas dos edifícios da redondeza à procura de algo, mas nunca deparei nada de interessante de madrugada. Essa noite estava cumprindo o protocolo de monotonia da minha vista até surgir um vulto preto sobre o telhado do vizinho.

Era escuro e distante, não conseguia distinguir o que era na verdade tal vulto, então resolvi usar meu superpoder de observador, o olho biônico, e averiguar do que se tratava o dito vulto. Ele andava de um lado para o outro, às vezes parava um instante e na seqüência retornava ao seu movimento aparentemente motor e involuntário de ir-voltar-ir-voltar. De repente surge aquele brilho que, confesso em um primeiro momento me assustou, mas vendo mais detalhadamente notei que era um gato preto, um simples felino boêmio divertindo-se madrugada à fora.

Fiquei encarando o bichano e percebi que também estava sendo encarado. Aquele brilho reluzente do olhar do felino vinha em minha direção e penetrava intensamente através da minha córnea, o meu olhar com o dele, refletindo um ao outro, e o reflexo transmitindo outro reflexo, e outro e outro. Nunca tinha visto um gato daquele porte, mirradinho, tão raquítico como uma criança somaliense anoréxica, porém, aparentemente, cheio de saúde e disposição.

O bichano continuava caminhando sobre os telhados e por alguns segundos dissipava-se na escuridão, deixando aquela cintilação intensa no mesmo lugar, como se fosse uma luz refletida de algum apartamento ou até de um poste.

Eu o encarava com o intuito de assustá-lo e afasta-lo para longe de mim, não por ser um gato preto, não acredito em superstições, e sim por que eu tenho tanta alergia à gatos que alguns fugazes segundos acompanhados por um em um lugar fechado pode fazer com que eu espirre durante todo o resto do dia. Até penso que a maneira mais fácil ou educada de alguém se afastar de mim, sem querer dizer o quanto minha presença incomoda é comprando um gato, ou até mesmo arrumando um emprestado.

E aquele felino continuava perambulando na penumbra, pra lá e pra cá, pelas superfície das telhas, com o mesmo olhar hipnotizante. Acabei por ficar ávido por esse gato preto, me mordendo de raiva por ter sido presenteado com tantas alergias. Até que me senti tão dominado por aquele brilho minúsculo e intenso que de alguma forma parecia que ele me chamava, com aquele feixe linear de luz transmutando-se em uma longa reta com um tesouro no final.

De repente acordei, sentado na janela, quase invadindo o telhado vizinho e me lembrei que a última vez em que eu subi em um telhado eu escorreguei e caí, ileso, mas caí, seco no chão. Desci pra dentro de casa e virei às costas, e quando foquei novamente o telhado vizinho nada havia, estava tudo de volta ao normal, com aquele vento soprando o nada, e me dei conta que aquele gato não passou de um fruto da minha imaginação, uma miragem. Aquele bichinho tão dengoso e carismático e ao mesmo tempo desagradável não existiu.

E a noite passada eu vi fotos de gatos e sonhei com gatos. Por que cargas d’água há gatos por tudo o que eu vejo?

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