quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Atílio, The Voyeur

Atílio usa óculos de grau, dois para o olho e esquerdo e dois para o olho direito, não usa calça jeans e estuda engenharia mecânica, mas tudo o que queria era comer a vizinha do 402. Nosso nobre protagonista morava no 401, ao lado do seu desejo carnal, e não acordava e nem dormia antes de imaginar e pensar com as próprias mãos na loira dos seus sonhos. Aliás, uma gorgeous loira, exatamente o adjetivo que a loira vilã de um olho só de Kill Bill adora. Além do adjetivo as duas tinham outra similaridade bastante notável, tudo, menos os olhos, sua vizinha ainda tinha os dois, mas nenhum para Atílio.

Eu moro no bloco à frente, e qualquer semelhança com James Stewart e Hitchcock é mera coincidência, eu só espio quando estou muito entediado, tipo num domingo depois do futebol. Hoje é domingo e há dez minutos eram onze horas da noite. Ao contrário de Atílio, não uso óculos, possuo uma visão boa e a desenvolvi quando fui atirador de laranjas. Olho pela janela e vejo o rapazinho deixar as lentes de lado e deitar em sua cama, parece que está se preparando para dormir, mas após apagar as luzes Atílio puxa o binóculo de dentro da gaveta do criado-mudo e enxerga através do reflexo do vidro de uma janela fechada àquela loira dançar na frente do espelho. Dizem que caráter é o que a gente faz quando ninguém está olhando, mas acredite, sempre tem alguém olhando. Em tempos de Big Brother e vigilância privada só estamos livres de sermos observados pelos cegos.

Não era ingenuidade da Milena, era sanha. Temos musas esculturais que aparecem na televisão, em Hollywood, em revistas, mas também temos, neste mundo, belezas ocultas aos montes espelhadas por aí (acredito em Deus por isso). Nossa femme fatale dançava todos os dias, à tarde no ensaio do grupo de dança e à noite, nua, por prazer, dois prazeres. O primeiro da própria arte que dominava, o segundo do sadismo ao bloco B inteiro. De segunda a segunda era vista não só por Atílio, mas por Raul que era aposentado e Bernardo que era casado. Entretanto, só o míope utilizava zoom para o espetáculo.

Com o passar dos meses, foi se apaixonando cada vez mais por sua vizinha. Nestas horas um tímido deve pensar que sua afasia era o maior castigo da humanidade. E era. Pensando nas horas vagas montou um álbum de fotos virtuais com as dezenas de poses da sua utopia sexual. Fez então essa rotina durante seis meses, fotografava à noite e se masturbava à tarde. Atílio não comia mais, nem comida, nem ninguém. Tampouco saía de casa, Atílio só esperava pelo momento.

Um dia esse momento não aconteceu. Pela primeira vez em quase um ano, ela não dançou à frente do espelho. Atílio não soube o que fazer, seu cérebro entrou em colapso, deu pane geral no sistema nervoso. Seus movimentos agora eram descontrolados e, tomado por uma coragem romântica, saiu do apartamento e tocou a campainha do 402. Vinte segundos depois Milena atendeu, cumprimentou o vizinho e perguntou o que ele precisava. Atílio avermelhou-se, falou que foi acender a luz e apertou sem querer a campainha, pediu desculpas e voltou ao seu apartamento. Aguardou mais uns minutos na janela e finalmente enxergou sua musa à frente do espelho. Tirou mais umas fotos e foi dormir, satisfeito.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

nostalgia

te olhei num quadro
abstrato
falsificado
com ramos de flores
de puro plástico
reciclado
de garrafas
de refrigerante

eu contei carneiros
no teu sonho
mais furioso
de puro feitiço
e simpatia
do manual
da bruxa
da livraria

estamos sós
estamos sós

estaria doce
se tu não fosse
um incêndio fatal
uma cara de mal
que contagia
e não cumpre promessas
e jura o mundo
por diversão

estamos sós

terça-feira, 27 de abril de 2010

boa noite

não tem como tu esquecer do vazio, do que não aconteceu, da indiferença de acordar, tomar café, colocar uma roupa adequada segundo o caderno de moda do jornal dominical, ir trabalhar feito uma máquina, sair par ao almoço, voltar para a máquina e finalmente chegar em casa para assistir o que acontece no mundo direto da tela da televisão com um Bombril na antena, antes de jantar qualquer coisa, tomar um banho e se preparar para a roda girar novamente quando o sol nascer, ou quando o despertador tocar, antes do astro rei, enquanto os mendigos ainda achacam para beber, para fumar, em uma aventura sem fim que pode ter começado há menos de cinco minutos mas que parece eterna, muito mais romântica do que a de quem está acordando, muito mais Kerouac do que Manual da chaleira elétrica Arno, muito mais David Lynch do que Mesa redonda de futebol e tu sabe disso, mas usa o artifício dos bens materiais e do dinheiro no banco, aquele que tu vai deixar pros filhos que não vai ter, pros pais que já partirão ou pra mulher que dividirá a herança com um go-go-boy da edição de setembro da G-magazine, mas que tu nem desconfia, pois passa tempo demais no trabalho, tempo de menos em casa, ou kitinete, que por sinal é menor que o escritório que tu divide com mais quatro workaholics mecânicos que mal lembra seus nomes, mas lembra se um deles derramou café no teu espaço ou se ele fede ou se ele é mudo ou se ele se faz de mudo ou se ele fala tanto que não se entende nada do que sai de dentro ou se ele tá (na tua cabeça paranóica e desgastada) tentando te passar para trás ou se ele come a mulher do chefe, sem imaginar que ele pode estar comendo a tua, pois tu desdenha tanto daquele patife só por pensar que todos são piores do que você quando você é pior do que todos, a escória da inglória que ri freneticamente dos doentes e dos desabrigados mas que de segunda a sexta dá boa noite ao William e à Fátima e pensa que teu filho tá no quarto estudando com o laptop novo que ganhou de aniversário quando na verdade ele está assistindo a Rita Cadillac de quatro e só abrindo a porta do quarto sem bater que talvez mude seus conceitos e perceba que o controle remoto não faz tudo aquilo que tu pensa.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Hell

É calor dentro de casa, calor na rua, calor no corpo, calor na mente, calor sob e sobre as saias também. O calor é o caos da sociedade, é o motivo da sede e do desperdício de água, do uso abusivo de climatizadores e dos apagões de energia, é o fim do mundo.

Quem não tem piscina caça com chuveiro e por isso agora pouco terminei meu terceiro banho diário. Com o tempo a gente vai descobrindo técnicas de adaptação às mudanças climáticas. O verão é a única estação do ano em que faço a barba todos os dias, uso este artifício para ficar mais tempo debaixo do chuveiro sem me preocupar e sem jogar água fora inutilmente. Faço devagar, pra cima e pra baixo até desligar o chuveiro com os dedos enrugados e sair de cueca do banheiro para escrever um texto sob um ventilador de teto que já teve seus dias de ouro, mas que hoje não passa de enfeite. Agora estou suando cântaros, pronto para o próximo banho. Mas se eu já me barbeei, quais pelos irei cortar?

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Wayne diz:

toda cidade, cidade vai
cidade-garça, cidade-farsa, cidade-dela
nas fotos ou jornais
cidade-guerra, cidade-estado, cidade-maravilha
só cidade, mocidade
a nós, ao rei

toda parte um dia cai
cai império, cai a casa, cai a chuva
verdes e maduras
cai o mundo, cai o dólar, cai o peito
só cai, Maccai
a eles, a eles

tente de novo sem calar o povo
o povo já é calado
fica fácil
assim
é difícil, né?
essa história de lisura

vamos de carro vamos pai
carro-chefe, carro-forte, carro-pipa
“pneu furou, acenda o farol”
carro-choque, carro-bomba, carro-zero
de carro, carro-céu
a mim e a você

vá em frente, a vida é sua
mas já deve saber
ninguém daqui sai ileso
aceso, o mesmo
pois sou cowboy Wayne
e ganho até de mim mesmo

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Hoje foi menos ontem que amanhã

Fui buscar uma escada no porão pra trocar uma lâmpada queimada na varanda. Tive que descer até lá, pois não tem mais cadeiras, os cupins roeram toda a madeira nestes pouco mais de quinze anos que eu não voltava à casa de campo do meu avô celeste. Desci o último degrau e tropecei em uma lata de tinta, pintei o chão de azul metálico. Fiquei me perguntando como a tinta estava fresca se eu era o único que sabia existência da casa e a abandonei anos. Quando estava quase chegando a uma resposta mais ou menos possível fui acordado a tapas e gritos pela minha mulher. Perguntou por que eu insistia em trazer garrafas cheias para a cama e, coberta de cerveja, começou a me mandar para fora de casa e aí eu matei a charada da tinta fresca derrubada, levantei satisfeito.

Não sei quantas vezes ela vai aguentar, nem sei mais quantas vezes fui chutado de casa. Sempre finjo não me importar, fico dando umas voltas pela cidade de manhã cedo e ela sempre me encontra no mesmo lugar, sobre a ponte observando os barcos atracados, e pede para eu voltar, eu volto. Abro a porta e não falta nada em casa, abro a geladeira e sinto falta das garrafas que ela confisca. Talvez seja esse o motivo de eu não dar presentes a ela, sempre preciso repor o meu estoque de cerveja que ela joga fora. Ainda desconfio que ela usa para subornar o fiscal alcoólatra da empresa de TV a cabo por causa de nosso gato persa.

Isso já passa das nove horas da noite, o noticiário já acabou e ela está assistindo aquela novela chata que sempre acaba com o ferramento do vilão. Eu penso “eu amo essa mulher”. Depois eu penso “eu amo esse som do Neil, ela que me desculpa, mas vou cavalgar”. E passo mais uma noite fora, observando a lua.